Uma falha de tradução

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UMA FALHA DE TRADUÇÃO1 Paulo Sérgio de Souza Jr.

A visão da alfombra causava um baita incômodo. Sob o acúmulo das fantasias advindas a toda hora da imaginação, cria avistar um ponto nodal abrolhando, um âmago ignorado no qual podia roçar, mas fintava justo quando ia alcançá-lo. Continuava. [...] No fundo da alfombra, diriam, um fio tramava o ponto Alfa obscuro, [...] furo abissal com raio nulo, [...] turbilhão, muralhas, prisão, divisórias divisadas, mas nunca transpostas... Insistiu por oito dias [...] Marco algum, timão algum, farol algum, mas sim 20 arranjos dos quais não tinha como sair; sabia, contudo, nunca ignorando, da sua circunvizinhança à solução, roçando-a: quando a quando isso aproximava, palpitava — quando ia sacar [...], tudo turvava, tudo ia sumindo: sobrava só um cochicho furtivo, uma algaravia sibilina, um galimatias difuso. Um dia falso. Um imbróglio.

Georges Perec, La disparition, 1969; trad. minha.

Numa carta a Wilhelm Fliess escrita em 6 de dezembro do ano de 1896 — também conhecida como “Carta 52” —, Sigmund Freud apresenta o recalcamento [Verdrängung] como um problema de tradução entre os registros do psíquico. Se acompanharmos o seu texto, porém, veremos que não está dito, ali, que o recalque se trataria de um erro de tradução — uma tradução equivocada, uma tradução desviante

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Trabalho apresentado na mesa intitulada “Uma outra cena”, durante a XIV Jornada Corpolinguagem / VI Encontro Outrarte. Instituto de Estudos da Linguagem – IEL/ Unicamp. Campinas, 5 a 7 de novembro de 2014.

[Übersetzungsfehler] — e sim de uma falha, um impedimento [Versagung] no sentido de algo que, em ocorrendo (em pleno processo, digamos) não se dá, isto é: aborta, no sentido em que se aborta um plano. O que intriga, porém, é o fato de tratar-se aí, segundo Freud, de um plano de tradução. Dito isso, como é que podemos desdobrar o que aproximaria recalcamento e tradução, ou melhor, recalcamento e carência de tradução? Que consequências essa comparação poderia trazer, tanto para a psicanálise quanto para a teorização sobre a lida tradutória? Ora, o que permitiria a Freud aproximar a tradução de algo que tem a sua funcionalidade precisamente enquanto falha, a não ser o que, tanto no recalcamento como na tradução, não passa? — ou melhor: o que, em não passando, se dá. É partindo desse ponto que proponho aqui uma discussão a respeito daquilo que, estruturalmente, não passa de uma certa maneira; e que, enquanto falha, é justamente o que cria a possibilidade da operação. Vejamos. Em primeiro lugar, entretanto, há que se perguntar: o que quer dizer não passa? Mas também: não passa de onde para onde? Bem, sabe-se que Freud não pensou o psíquico sem uma estratificação que a ele fosse inerente, anunciada no ano anterior, em seus Estudos — escritos em parceria com Breuer — sobre a histeria (1895). E isso devido ao fato de o material mnêmico, “em função de novas circunstâncias”, segundo ele, experimentar sucessivas transcrições [Umschriften]:

O que quero destacar aqui é que as inscrições [Niederschriften] sucessivas representam a operação psíquica de épocas sucessivas da vida. E é na fronteira entre duas destas épocas que tem de produzir-se a tradução do material psíquico. Atribuo as peculiaridades das psiconeuroses ao fato de que não se tenha produzido uma tradução adequada para certos materiais, o que comporta certas consequências. (Freud 1986[2008, pp. 174-5])

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Há, assim, toda uma dimensão temporal em jogo nesses estratos/reescritas — reescritas estas, aliás, que contabilizariam no mínimo três, embora seja provável haver mais, salienta Freud nessa mesma carta. No ponto-morto, o “zero” da série em termos mnêmicos, estão os neurônios W (associados às percepções): eles não retêm nenhum traço do acontecido. Daí, as transcrições: a primeira que Freud enumera — dizendo ser uma Niederschrift (inscrição) — seria os signos de percepção; a segunda — também chamada de Niedershrift — seria o inconsciente; e, por fim, a terceira — que ele chama de Umschrift (transcrição) — trata-se do pré-consciente. Disso tudo, até agora, guardemos três coisas que me parecem relevantes:

i) A tradução entre os registros é, fundamentalmente, uma operação que comporta certa materialidade, pois, em todo caso, é de traço [Spur] e escrita [Schrift] que se trata, e não de sentido2;

ii) O delineamento de uma temporalidade cronológica no decorrer dessas inscrições — uma vez associadas a “épocas sucessivas da vida” — é o indicador do bom resultado do traduzido. E o fato de que sentido e orientação (espaço-temporal) sejam vocábulos conexos não é pouco, uma vez que a partir daí podemos formular o mesmo da seguinte maneira: em termos de temporalidade cronológica a cada inscrição, é o sentido que será, ali, o parâmetro do bom resultado do que se traduziu;

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“[...] a memória não está disponível de maneira simples, mas múltipla, repousada em diferentes tipos de sinais [Zeichen]” (Freud 1986[2008, p. 173]). É interessante lembrar que Zeichen vem da raiz protoindoeuropeia *deik-, ‘mostrar’ — está em jogo, portanto, a escrita enquanto algo que aponta, indica, e não algo que, em princípio, signifique.

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iii) O atravessamento dessa temporalidade por um elemento que se recuse ao passoa-passo cronológico estratificado, e, nas palavras de Freud, reste como Überlebsel [sobrevivente] é o índice de uma Übersetzung [tradução] abortada; da invasão, portanto, de uma inscrição noutra instância sem que tenha sido devidamente inscrita, ou melhor, sobrescrita (aí Freud fala em Überschrift): algo permanece atual, acima de tudo, lá onde deveria carregar as marcas do passado; por outro lado, reconhecer essas marcas do passado seria justamente o problema, pois o que está em jogo é sempre uma liberação de desprazer que seria gerada pela tal tradução bem-sucedida, e daí a recusa a reiterar essa historicidade com as chancelas que lhe trariam o ato de traduzir. “Tudo sucede, então”, afirma Freud, “como se esse desprazer tivesse suscitado uma perturbação de pensamento que obstaculizasse o trabalho de tradução” (Freud 1986[2008, p. 175]).

Assim, os estratos são, a cada vez, origem e destino de cada inscrição. Seria simples, não fosse a disparidade entre eles, de modo que entre cada um há o abismo instaurado pela própria ideia de origem e de transposição por ela convocada. Nesse resvalar de inscrições, de vestígios mnêmicos escande-se o tempo, que, por um lado, por mais que se tente desespacializar, é falseado pela medida e sempre esbarra no fato de que “nós olhamos instintivamente nosso relógio ou calendário como se em relação [a ele, o tempo] tudo se reduzisse a assinalar cada evento em um ponto fixo para exprimir em anos, meses e horas a distância que separa uns dos outros” (Minkovski 1933[2011, p. 87]). Por outro lado, no entanto, nas palavras de Lacan — em uma resenha a esse mesmo livro, escrita e publicada por ele em 1935 — também há no tempo algo que se opõe ao “espaço claro, enquadre da objetividade”. Isto é, também há “o espaço negro

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do tateio, da alucinação e da música” (Lacan 1935, p. 431): espaço não orientável que funde os sentidos, e confunde, qual Freud, aquele que quisesse ler esse seu esquema do aparelho psíquico, ali apresentado na carta, de modo um tanto quanto linear — e que, dessa forma, procurasse bussolar os estratos, norteando a escrita [Schrift]. “Ora”, poderíamos nos perguntar: “Mas, afinal: Überschrift, Niederschrift ou Umschrift?” Acima, abaixo ou ao redor: onde diabos insta a letra? Bem, se as inscrições estão separadas, mas, assevera Freud, “não necessariamente de modo tópico”, a nossa própria pergunta — mediante um pequeno desvio — constitui sem demora o expediente da resposta, qual seja: “acima, abaixo e ao redor”.

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Digamos, com Augusto dos Anjos em seu “Lamento das coisas”, que o tempo — como as traduções, por que não? — conserva bem a sua indecidibilidade tópica: “pancada por pancada” o relógio tenta balizar a “sucessividade dos segundos”, e o hiato entre as instâncias psíquicas se demarca ao mesmo tempo em que, movediço, engole de um só golpe o seu entorno. Em direção a quê? Não seria à origem?! Pois bem, talvez pudéssemos situar aí justamente o recalcamento originário [Urverdrängung] em sua força de atração de que falará Freud em seu texto de 19153. Lembremo-nos, pois, que a própria palavra ‘origem’ [Ursprung] é composta pela partícula ur- (primevo, primário, primordial, originário) e por Sprung (pinote e fissura). Logo, salto e fenda: uma irrupção, tanto na medida em que algo desponta quanto na medida em que, junto desse algo, instala-se uma cisão e demanda-se, a partir de então, numa só tacada, tanto reinscrição quanto re-calque [Nachdrängung] — “o recalcamento propriamente dito”, nas

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Ver Referências bibliográficas.

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palavras de Freud (1915[1979, p. 143]). O original, por assim dizer, dá brecha a traduções: exige os seus decalques. Contudo, a ideia de positivar a fissura, pois ela é que constitui esse salto prenhe em efeitos, é tão produtiva quanto imaginariamente impraticável — de modo que, para haver fenda, tendemos de imediato a pensar no dois que desse lugar ao seu espaço. Dizemos aqui o contrário: minimamente, que não é o caráter de cada estrato psíquico que pode garantir a hiância que os separa, mas é justamente o fato de haver hiância (diferença e fracasso como origem) que possibilita que eles sejam vislumbrados num segundo momento lógico. Inscrito nesse fiasco [bévue], o inconsciente [l’une-bévue] empossará justamente o fracasso como método composicional do sintoma; e será nos chistes, nos lapsos e nos sonhos, isto é, quando a consciência eclipsa (Unbewusste), que o descompasso do falante consigo mesmo vai se dar a ver sujeito inconsciente4. Com isso, é na medida em que os atos são falhos — e que, enquanto tais, são discursos bem-sucedidos — que a possibilidade do sintoma se fixa nessa lacuna, frente ao Outro, na qual se revelam o barramento e a não identidade de um sujeito que a prática da língua tenta escamotear, mas que, simultaneamente, reconhece por seu puro e simples exercício. Não se trata, portanto, de uma falha de tradução qualquer; mas de uma falha calculada, por assim dizer, pois é justamente a obstaculização causada por essa inibição tradutória que torna possível, em certa medida, livrar-se do desprazer previsto. No entanto, quanto ao sexual, por conta de as “intensidades ou magnitudes de excitação” por ele provocadas não poderem ser liberadas e crescerem com o tempo, há que se notar o caráter intempestivo disso que Lacan (12 de dezembro de 1972) chamou de sexão: 4

Não é escopo deste trabalho adentrar as questões do recalque na psicose; em todo caso, vale salientar que, “no caso das neuroses, o recalcado reaparece in loco, ali onde foi recalcado, isto é, no meio dos símbolos, na medida em que o homem se integra a ele e nele participa como agente e como ator. Ele reaparece in loco sob uma máscara. O recalcado na psicose, se sabemos ler Freud, reaparece num outro lugar, in altero, no imaginário, e aí, com efeito, sem máscara” (Lacan 1955-56[2008, p. 127]).

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Assim o incidente sexual ocurrido em uma fase produz efeitos não apenas nela, mas também em uma fase seguinte, como se fosse atual e é, portanto, não inibível ou irreprimível. A condição da defesa patológica (recalcamento propriamente dito) é, então, o caráter sexual do acontecido e que tenha ocorrido em uma fase anterior. (Freud 1986[2008, pp. 175-176; sublinhado do autor; grifo meu])

Em todo caso, sabe-se que a relação entre a noção psicanalítica de sexualidade e o ato sexual não pode ser pensada como uma simples relação de adequação. Ao invés disso, convém pensá-la como uma relação de inadequação, o que “apontaria para a complicação específica que é inerente à sexualidade humana como tal, conduzindo ao reconhecimento de uma complexa relação entre sexualidade e sentido” (Leite; Souza Jr. 2014, p. 341). Não se traduz o sexual porque traduzi-lo seria se deparar com o fato de que, ali, o sentido não fecha. Resistir a reconhecê-lo como falta, entretanto, concede sua atemporalidade, sua contemporaneidade na vida psíquica do sujeito. A questão é que, se o psíquico se estrutura como defesa ao fato de que há sexão, a não tradução do sexual e o seu desconforto têm aí um papel fundamental. E essa falta estruturante é o que passa, sem tradução; mas, ponto cego, dá o mote do texto psíquico, com suas sobrescrições, inscrições e transcrições. Fazer com isso, sem recusá-lo, talvez seja o que Freud chama de “travailler sans raisonner” [trabalhar sem raciocinar], citando o Cândido de Voltaire — sem traduzi-lo (!) —, enquanto encerra essa mesma carta a Fliess num adendo dedicado a assuntos que ele diz serem de cunho particular (Freud 1986[2008, p. 181]). Carta que havia se iniciado contando que, naquele mesmo 6 de dezembro, Freud havia chegado à plenitude do trabalho [das Vollmaß von Arbeit] e ganhado uma bela quantia de florins, e que termina reiterando: “tenho estado numa trabalheira total [in vollster Arbeit]”. O texto de Freud ecoa pelas beiradas: Überschrift, Niederschrift, Umschrift; Urverdrängung,

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Verdrängung, Nachdrängung. Vollmaß, vollst... Arbeit, Arbeit, Arbeit: trabalhando sem raciocinar [raisonner], algo ressoa [résonne]. A falta de tradução de que falava Freud a Fliess na carta — e que nós, enxeridos que somos, lemos indiscretamente — ensina que tem cabimento labutar à procura das beiras do texto. É o que fica escancarado, por exemplo, no trabalho de tradução da obra de Perec com que iniciei essa fala — o afamado La disparition, escrito inteiro sem que nele se inscreva a letra ‘e’. Ali o ato tradutório exibe claramente o seu viés de cambista da falta: deixa-la passar; fazer com ela e seus efeitos. Não se traduz a letra ‘e’, pois ela sequer está no texto; traduz-se o resto, que, no entanto, não é sem ela: muito pelo contrário. É ali que ela ressoa. Sua falta arquiteta os andaimes da obra, desde as escolhas lexicais até a própria construção do enredo. A diferença da falta, aqui, do modo como ela é articulada no discurso corrente — e isso nos interessa enquanto analistas —, é que não se trata de algo que se deixa pelo caminho, que é passado para trás, e sim, ao contrário, de algo que traspassa o sujeito em seu percurso. Übersetzen [traduzir], nesse sentido — ou nessa carência de sentido, melhor dizendo —, é assentar [niedersetzen], assentar as letras, mas também, e sobretudo, realocar [umsetzen], realocar os vazios e limitar a cisma inconveniente com o sentido. Laborar, elaborar, perlaborar... travailler, travailler, mas sem encafifar demais: assim, talvez o sujeito cismado corra o risco de pôr-se à prova desse estrangeiro que passa sem documento, mas, sabendo perfeitamente qual porta é a serventia da casa, encontra abrigo bem ali onde lhe dá na veneta.

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Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund (1986) “Brief an Wilhelm Fliess vom 06.12.1896”, in: DIRKOPF, F. et al. (org.) Aktualität der Anfänge: Freuds Brief an Fließ vom 6.12.1896. Berlim: Transcript Verlag, 2008; p. 173-183. ___. (1915) “La represión”, in: Obras completas. Trad. J. L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu, 1979; pp. 135-152. LACAN, Jacques. “Psychologie et esthétique.” Recherches philosophiques, vol. 4, 1935. ___. (1955-56) O seminário, livro 3: As psicoses. Trad. A. Menezes. 2a ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. ___. (1972-73) Le séminaire, livre XX: Encore. Versão Staferla. Disponível em: < http://staferla.free.fr/S20/S20%20ENCORE.docx >. Último acesso: 09/02/2015. LEITE, Nina Virgínia de Araújo; SOUZA Jr., Paulo Sérgio de. Sexual: o contemporâneo da psicanálise. Alea, vol.16, n. 2, 2014; pp. 338-345. Disponível em: MINKOVSKI, Eugène (1933). “O tempo vivido: estudos fenomenológicos e psicopatológicos / Primeiro capítulo.” [Trad. J. L. Freitas] Revista da abordagem gestáltica, XVII (1), jan-jun 2011. PEREC, Georges (1969) La disparition. Paris: Gallimard, 1989.

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